31/07/2014

Aprazíveis Diálogos - IX

 Hoje a história é contada pelo Amigo Henrique Antunes Ferreira da Minha Travessa do Ferreira. Há um local que nos uniu neste mundo virtual: esse lugar mágico é Goa. Pois, é exactamente de Pangim que o Henrique nos traz o seu aprazível diálogo. Muito obrigada.
À Frederika desejo que escreva muitos livros e tenha muito sucesso. :))

Frederika, minha Amiga
Nascida em Setembro de 1979, em Pangim, a capital de Goa, Frederika Menezes, vítima de paralisia cerebral, está em casa, a Vivenda Menezes, sentada na sua cama, com alguma dificuldade de se equilibrar. Conhecemo-nos há oito anos, mais coisa menos coisa, ficámos amigos e continuamos a sê-lo. Os pais ambos médicos são um casal exemplar. O Dr. José (Zito) Menezes foi colega da minha mulher durante os sete anos do então Liceu Nacional Afonso de Albuquerque, hoje um tribunal superior.
Arquitectura portuguesa em Pangim [ana]
Por seu turno, a Dr.ª Ângela é igualmente uma Senhora  excelente que vem apoiando a filha nas mais complexas situações. Frederika tem um irmão, o José João que actualmente se encontra no Dubai com a mulher e duas filhas, trabalha ali pois os salários em Goa são baixos. Vêm sempre que lhes é possível a Pangim. Frederika Raquel sente a falta das sobrinhas. Por isso todos os dias contactam através do Skype.

É esta jovem simpática, que gosta de se rir, autora de cinco livros, que fez o lançamento dos últimos dois, “Unforgeten” e “Stories in Rhyme”, o primeiro é ficção pura e o segundo são poesias para crianças, ambos ilustrados por artistas plásticos também Goeses. Desloca-se numa cadeira de rodas com a ajuda de um “anjo da guarda” o motorista de seu pai, o Sebastião, mais conhecido por Sebi que já leva 19 anos a trabalhar para os Menezes e é um fervoroso admirador de Frederika.

Ângela Menezes bateu-se denodadamente para que Frederika entrasse numa escola normal, pois de cabeça ela é, felizmente normal – e dotada. E conseguiu. Terminou o curso secundário aos 16 anos e com notas das melhores. Falar com ela é para mim um motivo de felicidade; por vezes as pessoas não entendem o que ela diz por dificuldades de dicção, mas eu esforço-me por ultrapassar isso, não lhe peço para repetir o que disse e entendo-a bastante bem. E ela – já o disse – gosta disso. E, por isso, gosta de mim; e eu, dela.

É feliz e bem disposta. Com as limitações físicas que tem dá gosto ouvi-la dizer que não tem tempo nem espaço para se queixar. A vida, para ela, é uma sucessão de momentos de felicidade e diz que tem tido sorte em todos os momentos “e eu reconheço que é assim”. Mas não se fica por aí. "Eu simplesmente adoro escrever; ela é a minha paixão e escrevo todos os dias ", diz Frederika, que se inspira no dia-a-dia, porque “tudo na vida  serve de inspiração para mim”. 

Mas, de onde lhe vem a força e a determinação que tem? Da família e dos amigos, sublinha. Participa nas redes sociais para contactar com toda a gente. Acredita que a tecnologia tornou a vida mais fácil para ela. "A tecnologia é útil para todos, não é só para mim. Teclo com dois dedos e até sou bastante rápido em comparação com pessoas que usam as duas mãos… ", e solta uma das suas gargalhadas tonitruantes pela ironia…, 

Tenho de dizer que Frederika é uma inspiração para todos aqueles que pararam após a sua doença. E acredita que na vida não vale a pena desperdiçar energia em sentido negativo. Se as coisas parecem impossíveis ou até muito difíceis, usa uma “receita” que é para ela, muito simples: "Continua a tentar. Em algum momento vais conseguir o que queres. Sou muito positiva. Qual é a utilidade de ser negativa? "

E agora uma revelação: “Eu não gosto quando as pessoas sentem pena de mim: e muito menos quando sou tratado como uma criança. Por exemplo, em vez de me perguntarem o meu nome, vão pedi-lo à minha mãe. Eu tenho personalidade, cérebro, aparência e foi-me dada esta vida bela. Não quero caridade de ninguém, por isso, gosto de pessoas que me fazem rir. Pessoas como tu ". Frisa também que não se dedica, apenas, a escrever, lê muito e gosta de pintar, com a ajuda do computador. 

Mas também escreve letras para música, porque, um dia “quero lançar um álbum com elas; mas preciso de alguém que possa musica-las e canta-las. Lê muito e também está interessada em dar palestras motivacionais, para dizer a quem me ouça, sobretudo gente como eu que o Mundo tem de ser positivo, pois há muita negatividade no ar…”

Volto, porém à sua fonte de força. “é a minha mãe. Quando eu era miúda, ela disse-me: tu tens cérebro e a funcionar bem. Afasta a inactividade, ocupa-te em alguma coisa. E foi o que eu fiz. Isso realmente inspirou-me e deu-me a força que tenho". 
Não me parece ser possível acrescentar mais alguma coisa a propósito da minha Amiga Frederika Menezes.
Antunes Ferreira

29/07/2014

Sal

Myra Landau, 
lua lua por favor não nos deixe... deixo sim,
vou embora buscar céus menos sombrios...


«Sem a arte, a existência não tem sal. 
Sem a beleza, a vida não tem chama».

José Rodrigues dos Santos, O Homem de Constantinopla. Lisboa: Gradiva, 2013, p. 458.

Orquestra Chinesa de Macau no Festival das Artes, Quinta das Lágrimas

Maestro Pang Ka Pang

Lie Jie, Zhongruan
Rão Kyao

A Orquestra Chinesa de Macau foi fundada em 1987. Em especial para o Pedro Coimbra.


27/07/2014

"ismos" e as proporções

Ando a ler "O Homem de Constantinopla" de José Rodrigues dos Santos que se baseia na história do Calouste Gulbenkian.
A Gulbenkian é um dos espaços museológicos que mais visito por causa das exposições realizadas. É um local muito agradável onde a arquitectura e a natureza comungam em perfeita harmonia. O livro só pela história  que encerra é algo que cativa. 
Quanto a Kaloust Sarkisian Gulbenkian é uma personagem controversa, pois suscita a admiração mas, também, em algumas circunstâncias, o desapreço. Porém, o saldo é positivo, era um homem que tirou partido do seu destino e soube conduzir os seus negócios. 
O escritor inicia a história com quatro versos de Fernando Pessoa que são sublimes para a biografia construída:
Cada um cumpre o destino que lhe cumpre,
E deseja o destino que deseja;
Nem sempre cumpre o que deseja,
Nem sempre deseja o que cumpre.

Trago esta personagem aqui pelo gosto que ele tinha, pela arte e pelo coleccionismo, além disso povoa o meu pensamento. Quem tem poder económico pode amar a arte tornando-a sua.
Apesar de ser amante da arte, da beleza e dos artefactos que nos rodeiam contento-me com o ajuntamento possível. 
Hoje a passear na feira de velharias encontrei uma chávena de café para a minha colecção. Observando-a, parecia-me que o seu design era Arte Nova mas ao procurar os seus dados vi que foi uma chávena fabricada na antiga Kaiser Porzelan mais propriamente na Alka Bavária e pelo carimbo da mesma [ver figura abaixo, retirada do site da fábrica], vi que foi fabricada entre os anos de 1938 e de 1946, logo é uma chávena que foi criada ou no ano em que antecedeu a II Guerra Mundial ou durante a mesma. O movimento nas artes decorativas denominado Arte Nova já tinha terminado, possivelmente insere-se na Arte Déco que terá os dias contados.

A chávena foi-me oferecida e custou a quantia de 2 euros. 
Não é um tesouro mas é claro que, para mim, torna-se num. 
Além do dourado a chávena é branca e tem um azul celeste.

Retirado do site acima assinalado


A deambular pela feira, a minha alma ficou presa a variadíssimas coisas, com preços nada semelhantes, mas há que fazer obras em casa e por isso ter cuidado com os gastos.

A peça que me custou mais dinheiro (10 euros), não está perfeita, não sei se é verdadeira,  conjecturei que poderia ser de um serviço de brincar pois mede 16,3x12,2 cm, mas eventualmente, poderá ter uma utilidade mais prosaica. Foi confeccionada em Coimbra como mostra o reverso da travessinha.

Comprei  mais três peças, duas delas do mais kitsch possível, pediram-me 50 cêntimos por cada. O meu gosto nestas peças prende-se com o espírito popular. Não sei o que vou fazer com elas, talvez sejam dignas da minha cozinha. A primeira é de barro, não vale nada, e mede 7x7,5 cm e a segunda, 10,5x 6 cm.

 A última peça é a Nossa Senhora da Conceição em pó de pedra (?).
Não está completa e é pouco perfeita, tem um furo na base e mede 7 cm.

Chegados aqui o que resta? 
As proporções. O espólio do engenheiro Gulbenkian é inatingível para o comum dos mortais. O que faria a alegria do engenheiro afortunado, talvez fizesse a minha, mas a minha de certeza que não faria a dele. Porquê? 
Porque me contento com tontarias, feminilidades sem nexo, tesouros de imaginação.
Em suma, há algo que nos une: a beleza que é algo que partilhamos e o bom gosto, julgo que também. Vejamos:

Vivia de tal modo no desejo de se ligar ao que achava belo que, nessa manhã em que de novo se embriagava com o esplendor de Constantinopla a despertar, formulou pela primeira vez a pergunta que começava a corroê-lo.
"O que é a beleza?"
Todas as manhãs desde que as aulas se iniciaram, o jovem Kaloust atravessava o estreito no vapor para ir para a escola. A viagem constituía o primeiro ponto alto do dia, sobretudo àquela hora em que a luz da alvorada adquiria tonalidades tão fascinantes que deixavam uma impressão indelével no seu gosto nascente pela harmonia estética. [p. 63]
(...) 
"O que é a beleza?" perguntou mister Washburn num tom que tornava claro ser aquela a última das interrogações introdutórias. "Pulchra sunt quae visa placent, enunciou S. Tomás de Aquino: a beleza é o que agrada aos nossos sentidos. Nada podia ser mais verdadeiro. Mas onde a encontramos exactamente? Nos objectos em si ou na pessoa que os contempla?" [p. 75].

José Rodrigues dos Santos, O Homem de Constantinopla. Lisboa: Gradiva, 2013.
[O livro narra acontecimentos verídicos encenados com a ficção].

O destino de Calouste Gulbenkian cumpriu-se, o seu desejo de destino também. Do meu destino nada sei mas ainda não se cumpriu, nem o efectivo caminho nem o desejado. 
O meu gosto por velharias prende-se às memórias que cada objecto comporta.


25/07/2014

"Abstractio" - black and white

Bombardeamento na Faixa de Gaza

 ABSTRACTO, do latim ABSTRACTIO, significa algo que não é concreto. O que prevalece é a ideia e o conceito.

Acerca da arte abstracta Kandinsky evidencia que,

Se o artista é sacerdote da «beleza», esta deve ser procurada, segundo o principio do valor interior... A «beleza» só pode ser medida pela escala da Grandeza e da Necessidade Interior... É o belo que procede de uma necessidade interior da alma. É o belo que é belo interiormente. 

Wassily Kandinsky, Do espiritual na arte. Lisboa: D. Quixote,  2010, p. 114-116.

Sendo os bombardeamentos concretos, serão abstractas as pessoas que morreram? 
Israel bombardeou uma escola das Nações Unidas, na Faixa de Gaza, morreram muitos civis entre eles crianças... 
Como explicar o inexplicável? 
Como entender este fenómeno?
A comunidade judaica sofreu, no passado, horrores como é que agora responde com mais horror?

23/07/2014

Aprazíveis Diálogos- VIII

De Lisboa, mais propriamente do Estoril, uma flor trouxe-me o texto de Maria João Falcão do blogue O Falcão de Jade. Tive o privilégio de ler diversos contos desta minha amiga. A unir-nos para além de Roma, há uma cidade portuguesa cheia de afectos: Portalegre. A flor e a tela, de Aldo Zari (1982), são fotografia da sua autoria. Muito obrigada. :))

«A Mãe



Ela

Descia as curvas da serra, de carro, a ouvir um Nocturno de Chopin, quase sempre o mesmo.

Lembrava-me de ouvir a minha mãe tocar Chopin, ou Lizt, na velha casa amarela da minha infância.

Em volta a natureza era maravilhosa. Chegara o Verão e via os campos, lá em baixo, com as searas brilhantes e dourados, e uma ou outra papoila bem vermelha a rebentar.

Ia ter com ela, que estava a morrer.

Sabia que sofria e que tudo ia acabar em breve. Irremediavelmente, íamos ficar separadas, como tínhamos vivido tanto tempo.

Separadas.

Enquanto fazia e desfazia as curvas da estrada, no meio dos pinhais e dos eucaliptos, olhando as giestas amarelas cheias de força, pensava que, se calhar, lhe era indiferente ver-me chegar.

Quando entrava no quarto dela, esquecia tudo. Às vezes deitava-me ao lado e cantava-lhe baixinho as canções que me ensinara, em pequenina.                                                   Aldo Zari, Bailado [intitulado por mim]

“Ah! Si j’étais
le rossignol qui chante...
Dans la fôret, 
je viendrais près de toi.
Et chanterais
d'une voix si touchante...” 

Numa dessas manhãs, começou a chorar, de olhos fechados, soluçando como uma criança.
- O que foi, Mamã?

Disse apenas:
- Dói-me... 
- O quê, Mamã?

Eu falava-lhe como se ainda fosse pequena e estivesse deitada na cama dela, a ouvir as histórias que nos contava.
O que lhe doía?

Sabia que não lhe doía o que me doía a mim, o afastamento de sempre.
Guardava a esperança de que sentisse alguma saudade desses tempos, e estivesse agora mais perto de mim, na recordação. 

“Por isso, a vontade de chorar?”, pensei por um momento.
O mais provável era que lhe doesse a sua dor real, física.

Queixara-se sempre pouco a minha mãe, e aguentava a dor como aguentara a solidão na casa da Serra, tantos anos. 
Mas desta vez gemera, protestara.

“Pobre Mamã”…

Dei-lhe a mão, fiz-lhe uma festa, e comecei a chorar, baixinho, para ela não me ouvir.»

Maria João Falcão
Dois Nocturnos da minha eleição.

21/07/2014

4 telas e um acto

Da Guerra activa - a dor imensa...
Myra Landau



















Quatro telas e um acto foi como intitulei o grito de Myra contra a guerra que grassa em Israel.

Poema da Terra Adubada

Por detrás das árvores não se escondem faunos, não. 
Por detrás das árvores escondem-se os soldados 
com granadas de mão. 

As árvores são belas com os troncos dourados. 
São boas e largas para esconder soldados.

Não é o vento que rumoreja nas folhas,
não é o vento, não.
São os corpos dos soldados rastejando no chão.

O brilho súbito não é do limbo das folhas verdes reluzentes.
É das lâminas das facas que os soldados apertam entre os dentes.

As rubras flores vermelhas não são papoilas, não.
É o sangue dos soldados que está vertido no chão.

Não são vespas, nem besoiros, nem pássaros a assobiar.
São os silvos das balas cortando a espessura do ar.

Depois os lavradores
rasgarão a terra com a lâmina aguda dos arados,
e a terra dará vinho e pão e flores
adubada com os corpos dos soldados.

António Gedeão, in Linhas de Força

Dois mundos distintos aqui cruzados... cenário: os homens, 
o poder, o mal/ o bem.


... à guerra passiva - desemprego.
Vidros Partidos, uma curta-metragem do filme Centro Histórico realizada por Víctor Erice,
(ciclo de cinema do Festival das Artes, Coimbra).
A história do filme sobre a Fábrica de Vizela parte desta fotografia
Vidros Partidos 1
Actores e equipa de rodagem, o 6º a contar da direita é o realizador Víctor Erice que com olhar profundo filma a preto e branco [alguns apontamentos a cor]
o olhar de alguns operários, agora no desemprego.
equipo


Trabalhadores da fábrica que participaram no filme: Maria Fatima Braga Lima; Arlindo Fernandes; Filomena Gigante; José Cruz; Amândio Martins; Gonçalves Rosa; Henriqueta Oliveira; Manuel Silva e [filho de um operário] acordeonista Pedro Santos.

Da Senhora que se vê neste flash registei a ideia 
(pena minha não serem as palavras exactas que o trecho não dá):

- O que é a felicidade que a televisão anda sempre a mostrar? Não há felicidade... apenas há sim, alegrias e tive-as, tal como amarguras, mas felicidade não.

CENTRO HISTÓRICO é um conjunto de quatro curtas-metragens, reunindo quatro nomes do cinema contemporâneo, os portugueses Manoel de Oliveira e Pedro Costa, o finlandês Aki Kaurismaki e o espanhol Victor Erice.
Projecto para Guimarães 2012: preservar a memória de Guimarães e do Vale do Ave. Assim, os quatro realizadores, Kaurismaki, Costa, Erice e Oliveira filmaram respectivamente, O TASQUEIRO, SWEET EXORCIST, VIDROS PARTIDOS e O CONQUISTADOR CONQUISTADO.

19/07/2014

Zimbório visto do céu

Vaticano, Basílica de S. Pedro

De estabilidade não tinha nenhum desejo; queria que à minha volta tudo permanecesse fluido e provisório, e só assim me parecia salvar uma estabilidade interior muito minha, que porém não seria capaz de explicar em que consistia.

Italo Calvino, A Nuvem de Smog e A Formiga Argentina, (tradução José Colaço Barreiros). Lisboa: Teorema, 2001, p 25.

17/07/2014

Aprazíveis Diálogos - VII

Na zona de grande Lisboa, o amigo Manuel Poppe (Estoril) do blogue Sobre o Risco, foi uma das pessoas que por aqui passou. O que nos uniu foi a paixão pelo Panteão de Agrippa e a bela cidade de Roma. Atendendo ao meu pedido, o que muito agradeço, o Manuel enviou-me [nas suas palavras] o seguinte "contarelo":

A mão de Deus

 À memória de Luciana Piai, bela veneziana, jovem mulher pura, amiga fiel, morta antes do tempo, com a saudade e a ternura que me ficaram para sempre
Manuel Poppe, Telavive, Foto Dizza
 - A vida custa! – desabafou Alfredo.
 Sempre que saía de casa e ia respirar ar puro ao cafezinho da Malveira, a espreitar a serra de Sintra, encontrava o Alfredo. É um homem bom, vindo de Chaves, que estudou e se reformou professor universitário.  
 Tem o hábito de tirar e pôr os óculos de falsa tartaruga, olhar o infinito, e dizer coisas profundas. Depois, suspira e goza a própria lucidez.  
 Conhecemo-nos há muitos anos: desde a Faculdade.  
Era pobre, mas casou rico. Hoje, além dos óculos, arranjou um modo de viver com os outros: a condescendência. Porquê? Porque há no fundo dele, na barriguinha dele, no umbigo dele, o sonho de poder ser condescendente, generoso, paternal.  
 Dos bancos da Faculdade, ficou-me vê-lo saltar para o palco do anfiteatro maior e gritar uns versos épicos, entusiásticos, lusitanos; do dia-a-dia, lembro, com meiga ironia, o seu improvisado francês e a obsessão de uma senhora, que nunca conheci, a quem chamava “a minha marrraine”, com os três erres.
 - É verdade, Alfredo, a vida custa.
 Foi quando ele tirou os óculos e me fitou, incisivo:
 - Não tenhas dúvidas! Isto é uma pouca-vergonha! Ainda agora…
 E falou-me do que já lhe roubara o governo, a ele, Alfredo, catedrático jubilado, latinista conhecido e admirado.
 -E citado! -sublinhou.
Graças a Deus o sogro, senhor de uma rede hoteleira, ainda era vivo e o negócio prosperava. Se não…
- Vivo e rico! -sublinhava Alfredo.
E a mulher aplaudia, na casa que o sogro lhes oferecera e onde viviam os dois com os dois filhos.
- Se não fosse isso!
Não lhe perguntei o que seria se não fosse isso. 
Na mesa ao lado, estava uma senhora, com o neto.
- Quantos anos tem o seu neto? -perguntei-lhe.
- Oito. E já é um maroto.
Criança como as outras, feliz e a tirar do bolso da avó o que ela desse.
- Ó avó, custa só cinquenta cêntimos! Dá lá…. Anda…
- Não dou, pago depois.
E ele foi e voltou com três tabletes de chocolate.
-Três?! –exclamou a avó.
 O dono do café, embaraçado, justificou o garoto:
 - Ele quis, eu deixei… Crianças. E, depois, três euros…
 A avó fingiu que se zangava.
- Ó meu malandro!
O miúdo riu-se e fugiu: sentou-se fora, a olhar para a Serra.
- A vida custa! – repetiu o Alfredo.
E eu comentei, para que não ficasse sozinho:
- Ai custa, custa!
Agarrou logo:
- Achas que isto vai piorar?
- Com certeza!
- E vão tirar-nos mais dinheiro?!
- Cada dia mais.
O Alfredo levantou-se e sentou-se, tirou e pôs os óculos:
- Estou indignado!
O miúdo continuava nas escadas, a morder as tabletes.
-Graças a Deus, graças a Deus, o meu sogro ajuda-nos! E com mil demónios, também sou gente! Professor Universitário! Jubilado! E roubam-me! Depois de uma vida de trabalho!
Espreitou-me, desconfiado.
- A ti não te roubam?
Alfredo tinha estudado em Lisboa e alugara um quarto para os lados da Amadora. Subira na vida, realmente, a pulso e olho esperto.
-A vida custa! Sai-nos do corpo! -insistiu.
O miúdo voltara para dentro e fiz-lhe uma festa na cabeça.  
Tenho um metro e oitenta e a criaturinha, metro e meio.
Senti, no meu braço, uma carícia: era a criança a retribuir-me o gesto.
Pensei em Deus, no menino Jesus, naqueles que ainda não morreram vivos e não queimam todos os dias a alma. Sim: marejaram-se-me os olhos.
- Isto é indecente! Indecente!
A lengalenga do Alfredo.
E pensei, também, que o Alfredo era, apenas, um velho e aquele breve afago me aquecia. Acreditei que isto é mais do que isto, enquanto aquela criança não crescer, porque o andar dos anos destrói a pureza e multiplica os Alfredos.

Manuel Poppe, Natal de 2013

15/07/2014

Convite

O meu amigo João Menéres, do Grifo Planante, honrou-me com este convite. 

Muito obrigada. Respondendo:


 O mundo seria muito mais feliz se ...
o homem procurasse a maravilha.

Uma amizade é realmente importante quando ...
a verdade impera.

Paciência e tolerância são para mim ...
da primeira, tenho pouca, daí que o cúmulo da paciência é esperar com um sorriso :)); 
da segunda, aceitar sem reservas as diferenças.

Algo que me irrita profundamente é ...
a soberba.

Acho que as pessoas mais humildes ...
 estão mais receptivas à luz.

Quando o dia amanhece nublado eu ...
recordo Dom Sebastião... e sorrio porque ele trará o sol. :))

Uma qualidade indispensável nas pessoas é ...
saber escutar, observar, dar um abraço nas horas amargas.


Para concretizar a gentileza do João tenho que convidar seis amigas.
Vou fazer por ordem alfabética. À semelhança do que afirmou o meu amigo João, sintam-se à vontade para não aceitar o convite.

1. Cláudia- desafio - um livro para cada deixa -Livraria Lumière
2. Isabel -Palavras Daqui e Dali
3. Jane Gatti -Viver em prosa e verso
4. Margarida Elias - Memórias e Imagens
5. Maria João Falcão - O Falcão de Jade
6. Sandra -Presépio no Canal

 Finalmente para o João e para a Isabel que, entretanto, também me convidou deixo estas
ipomeias exuberantes. :))


13/07/2014

Aprazíveis Diálogos - VI

Deslocando-me agora para sul, chego à nossa capital. Lisboa amanhece com uma luz inconfundível. A primeira pessoa que convidei para estes diálogos aprazíveis foi a primeira visitante assídua deste (In) Cultura. Muito obrigada, Margarida.

Sigam-me:
e encontramos a magnífica porta e o texto escolhidos pela Margarida. 

 Música composta por Nobuo Uematsu para Final Fantasy - Behind the Door.

12/07/2014

" o Tempo"


Mário Vitória, Semeando Espelhos no Escuro da Perspectiva- Alice na Cidade.                     (Sem título)
Edifício Chiado, Museu da Cidade, Coimbra



Os relógios e os calendários não existem para nos recordar o Tempo que esquecemos, mas para regulamentar o nosso relacionamento com os outros - na verdade, com toda a sociedade -, e é nesse sentido que os usamos.

Orhan Pamuk, O Museu da Inocência (tradução de Miguel Romeira). Lisboa: Editorial Presença, 2010, p. 354.

O tempo sempre ele a recordar-nos que há passado, presente e futuro...
No livro de Pamuk, o tempo é a chave do linear, do improvável provado...  desfecho? 
O futuro é tangível.

10/07/2014

Desordem no jardim

Desordem no jardim



A desordem também tem cor e arte: 
é fruto da queda... quando acordamos do sonho.

A arte é um esquivar-se a agir, ou a viver. «A. de C. (?) ou L. do D. (ou outra coisa qualquer)» 

A arte é um esquivar-se a agir, ou a viver. A arte é a expressão intelectual da emoção, distinta da vida, que é a expressão volitiva da emoção. O que não temos, ou não ousamos, ou não conseguimos, podemos possuí-lo em sonho, e é com esse sonho que fazemos arte. Outras vezes a emoção é a tal ponto forte que, embora reduzida a acção, a acção, a que se reduziu, não a satisfaz; com a emoção que sobra, que ficou inexpressa na vida, se forma a obra de arte. Assim, há dois tipos de artista: o que exprime o que não tem e o que exprime o que sobrou do que teve. 

s.d.

Bernardo Soares, Livro do Desassossego. Vol.II.  (Organização e fixação de inéditos de Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença, 1990, p. 500.

 

07/07/2014

A Chave

O Museu da Inocência, de Orhan Pamuk , é o livro que ando a ler. A partir da sua escrita nasceu o museu em Istambul. Do livro para a realidade.
Tantos objectos, flores, pedras, fotografias [hoje, nem tanto pois guardam-se em arquivos de imagem] e pequenos nadas que coleccionamos fazem parte do nosso quotidiano e contam uma história. As imagens são retiradas do Google. Escolhi as chaves e o relógio por dois motivos especiais:
- A chave porque ela abre as portas da memória e simboliza a vitória sobre enigmas.
- O relógio indicador das horas porque elas marcam o nosso caminho e não voltam atrás e ainda, porque um dos meus sonhos era ter uma caixinha de música com uma bailarina como se vê na imagem.
- A flor, o cavalinho, o coração... porque são pequenos objectos que colocamos numa caixa.
- O vestido, o leque, o colar... porque há vestidos e adereços que marcam pequenas alegrias

A curiosidade sobre este livro partiu do registo de MR, a quem agradeço.


Imagens do Museu da Inocência, Istambul


Se num sonho um homem pudesse atravessar o Paraíso, sendo-lhe oferecida uma flor como garantia de a sua alma ter realmente ali estado, e ao acordar visse a flor na sua mão... Sim? E depois? 

dos cadernos de Samuel Tayler Coleridge  [poeta, crítico e ensaísta inglês].

Citação no início do livro. Orhan Pamuk, O Museu da Inocência. Lisboa: Editorial Presença. 2010, s/nº p. 


04/07/2014

Rainha Santa Isabel

Detalhes de uma tela sobre a Rainha Santa, D. Isabel de Aragão e Portugal (século XVII). Intitulei-a o Milagre das Rosas, o autor não está identificado. Está colocada num retábulo do altar do lado direito, após o transepto, na Sé Velha.




Comemora-se o aniversário do seu falecimento, data assinalada no dia 4 de Julho de 1336, em Estremoz. Nasceu em 1271 (dia?) em Saragoça, no palácio Aljafería depois de ser conquistado pelos reis cristãos de Aragão.

03/07/2014

01/07/2014

Aprazíveis Diálogos - V

Do Fundão recebi, com prazer, o texto de AC do blogue Interioridades que de mansinho, levemente, entrou pela janela aberta de par em par. Muito obrigada. 

Constant Moyaux (1835-1911) - View of Rome from the Artist’s Room at the Villa Medici, 1863

File:Constant Moyaux - View of Rome from the Artist’s Room at the Villa Medici.jpg


SUSTENTÁVEL LEVEZA 

 Sentias o fogo latente, o corpo a reclamar. A chama, incandescente, conduzia-te os sonhos, o peito era escudo onde tudo resvalava. Sentias a poesia na descoberta da noite infinita, na magia do despertar da aurora, na terra onde tudo continuava por lavrar. Intuíste novas palavras, novas linguagens. 

Quando aprendeste a pousar, suavemente, no aroma das alfazemas, já sabias que tudo continuava por fazer. Mas passaste a sentir, cada vez mais, o sereno sinal que da alma emana. 

AC




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