28/09/2013

O papel, a mesa, o sol, a pena...

HERMITAGE, Amesterdão

O PAPEL, A MESA, O SOL, A PENA...


***

Há momentos em que não sabemos como agradecer um gesto, uma palavra, uma escolha. Este poema foi-me enviado. Grata a quem mo deu a conhecer.
António Ramos Rosa e o livro de onde foi colhido o poema.

27/09/2013

A António Ramos Rosa...

... Frutos em forma de estrela

Homenagem tardia a António Ramos Rosa

A palavra

A palavra é uma estátua submersa, um leopardo 
que estremece em escuros bosques, uma anémona 
sobre uma cabeleira. Por vezes é uma estrela 
que projecta a sua sombra sobre um torso. 
Ei-la sem destino no clamor da noite, 
cega e nua, mas vibrante de desejo 
como uma magnólia molhada. Rápida é a boca 
que apenas aflora os raios de uma outra luz. 
Toco-lhe os subtis tornozelos, os cabelos ardentes 
e vejo uma água límpida numa concha marinha. 
É sempre um corpo amante e fugidio 
que canta num mar musical o sangue das vogais. 

António Ramos Rosa, Acordes (1989) Link

[Sublinhado meu].

25/09/2013

"My open Window"

De dentro para fora como se a janela fosse minha, Hermitage Museum, Amesterdão


blue morning glory
head bent in contemplation
of the coming dawn

***

this hazy morning
the rooster looks puzzled at
my open window

Eduardo Ribeiro, Among the wasps silence, twelve dozen haiku by a portuguese bum, p. 8 e 12.


23/09/2013

Outono...

Detalhe, Relógio Consola, Paris. c.1715-1730
Rijksmuseum



O ciclo fecha-se, 
as horas e os dias passam, 
ainda ontem tinha partido o outono 
e hoje eis que chega de novo. 
Os ponteiros ingratos laboram 
na sua rotatividade plena
é a sua razão de ser...
mas será a minha?





As cores de Van Gogh no seu museu, Museumplein, Amesterdão. As cores preparam o outono.



Tarde pintada
Por não sei que pintor.
Nunca vi tanta cor
Tão colorida!
Se é de morte ou de vida,
Não é comigo.
Eu, simplesmente, digo
Que há tanta fantasia
Neste dia,
Que o mundo me parece
Vestido por ciganas adivinhas,
E que gosto de o ver, e me apetece
Ter folhas, como as vinhas.


Miguel Torga, Antologia Poética. Casais de Mem Martins: Círculo de Leitores, 2001.

Bom Outono para todos!

21/09/2013

E todas as noites...

Um trecho ilustrado por Maria Keil. 

E todas as noites a Cila, em vez de conversar com a boneca, conversava com a lua até o sono chegar. E, enquanto ela dormia, a lua fugia da caixinha de vidro, andava pelo quarto, fazia partidas às bonecas, embalava a menina, até se tornar a esconder pela manhã na sua caixa, muito quieta e pequenina.

Maria Cecília Correia, Histórias de pretos e de brancos. Lisboa: Edições Ática, 1960.


Obrigada MR!


Lembram-se das caixinhas que tocavam esta música?

19/09/2013

Ponte - "Detive-me na ponte..."

Aprecio sobremaneira a poesia de Mário de Sá-Carneiro, o que nele há de nostálgico, solitário e triste. Um inadaptado? ... Não o seremos todos num ou noutro momento? 
Nos canais, em Amesterdão, a nostalgia esvai-se talvez por causa dos reflexos e da cantoria da água.

Ponte sobre o canal, Amesterdão


Ângulo

Aonde irei neste sem-fim perdido,
Neste mar ôco de certezas mortas? -
Fingidas, afinal, todas as portas
Que no dique julguei ter construido...

- Barcaças dos meus impetos tigrados,
Que oceano vos dormiram de Segrêdo?
Partiste-vos, transportes encantados,
De embate, em alma ao rôxo, a que rochêdo?...

- Ó nau de festa, ó ruiva de aventura
Onde, em Champanhe, a minha ânsia ia,
Quebraste-vos também ou, por ventura,
Fundeaste a Ouro em portos d'alquimia?...

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Chegaram à baía os galeões
Com as sete Princesas que morreram.
Regatas de luar não se correram...
As bandeiras velaram-se, orações...

Detive-me na ponte, debruçado,
Mas a ponte era falsa - e derradeira.
Segui no cais. O cais era abaulado,
Cais fingido sem mar á sua beira...

- Por sôbre o que Eu não sou há grandes pontes
Que um outro, só metade, quer passar
Em miragens de falsos horizontes -
Um outro que eu não posso acorrentar...

Barcelona, setembro de 1914


Mário de Sá-Carneiro, in Indícios de Oiro


«Performed in Stockholm Opera House with Royal Swedish Ballet in 2009».
Coreografia de Juan Ignacio Duato Bárcia, conhecido por Nacho Duato. O coreógrafo nasceu em Valência a 8 de Janeiro de 1957. Gentileza do Youtube.

17/09/2013

"suspiros de fogo"


William Hamilton, Campi Phlegraei,  1730-1803

Registo uma passagem de um livro que me ofereceram porque merece ser guardado na caixinha de memórias.


Vesúvio era um jovem que viu uma ninfa bela como um diamante. Ela rompeu-lhe a alma e o coração e ele não conseguia pensar em mais nada. O sopro cada vez mais ardente, ansiava por ela. A ninfa, esbraseada pela sua insistência, deu um salto para o mar e tornou-se na ilha hoje chamada Capri. Ao tal ver, Vesúvio enlouqueceu. Agigantou-se, soltando suspiros de fogo, e pouco a pouco tornou-se numa montanha. Agora, imobilizado como a sua amada, para sempre inatingível, continua a lançar fogo e a fazer tremer a cidade de Nápoles. Como a cidade indefesa lamenta que o jovem não tenha conseguido o que desejava! Capri jaz no meio da água, mesmo em frente dos olhos do Vesúvio, e a montanha arde, arde, ...

Susan Sontag, O Amante do Vulcão. Lisboa: Quetzal, 1997, p. 107.
Link das imagens




«The images below were mainly scanned from: "Les Fureurs du Vésuve" Découvertes Gallimard Albums; GT 10037 (ZB Zürich); Originals in: Hamilton, William: "Campi Flegrei. Observations on the volcanoes of the two Sicilies as they have been communicated to the Royal Society of London", Naples 1776. Text in collaboration with A. Bernhard and P. Leresche, class 6a HS 2000/01 KZU Bülach, Switzerland.»






William Hamilton, Campi Phlegraei,  1730-1803



Porque a cor do vulcão pode ser quase azul: Chet Baker - Almost Blue

15/09/2013

"Fiz um conto para me embalar"

Flores para a Cláudia e 
para a Natália Correia


Fiz um conto para me embalar

Fiz com as fadas uma aliança.
A deste conto nunca contar.
Mas como ainda sou criança
Quero a mim própria embalar.

Estavam na praia três donzelas
Como três laranjas num pomar.
Nenhuma sabia para qual delas
Cantava o príncipe do mar.                                                              
Rosas fatais, as três donzelas                                                            
A mão de espuma as desfolhou.
Nenhum soube para qual delas
O príncipe do mar cantou.                                                                         Detalhe*
         
Um poema da Natália Correia que trouxe da Livraria Lumière. Obrigada Cláudia pela beleza do poema.

*Natureza-Morta: Flores com Relógio de Bolso, de Willem van Aenlst, 1663, Rijksmuseum   



13/09/2013

Noivado

A João Mattos e Silva e muitos anos de poesia (11 de setembro).
Amesterdão


NOIVADO

Estão de branco as salinas
e noivam assim puras
com a terra.
O mar na despedida
da emoção
tece de espuma grinaldas
deixadas por pudor
sobre as areias.


João Mattos e Silva, Intemporal, Antologia. Lisboa: Universitária Editora, p. 110.

 

10/09/2013

No banco de jardim

Reflexões/reflexos num banco de jardim, Amesterdão

[O banco do jardim está vazio / mas existe]



NO BANCO DE JARDIM

No banco de jardim,
o tempo se desfaz
e resta entre ruídos
a corola de paz.

No banco de jardim,
a sombra se adelgaça
e entre besouro e concha
de segredo, o anjo passa.

No banco de jardim,
o cosmo se resume
em serena parábola,
impressentido lume.

Carlos Drummond de Andrade (cortesia do Google)

 

07/09/2013

Auto-retrato inventado - "Cansaço"

[Peguei num pincel imaginário e esbocei um auto-retrato.] 

Karel Appel, Homem entre Animais, 1949, Stedelijk Museum, Amesterdão


[O pássaro é o elemento primordial,]


[no conjunto entre os seres vivos...]


Cansaço

O que há em mim é sobretudo cansaço —
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas todas —
Essas e o que falta nelas eternamente —;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada —
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimno, íssimo, íssimo,
Cansaço...

Álvaro de Campos, in "Poemas" (cortesia de Citador)

04/09/2013

Olhares diversos e uma câmara, "Claro"

Amesterdão: uma cidade livre. 

Olhares diversos e uma câmara no Museumplein, numa manifestação contra Putin: "Putin, Putout"


CLARO

Claro que o moço na duna teve de notar
que eu o olhava intensamente.
Claro que depois passou perto de mim
com muitos movimentos dispensáveis
mesmo fazendo como quem diz que não me via.
Claro que começou um ballet de primavera
com um miúdo amigo e uma bola,
claro que se fartou, em jeito demasiado à menina,
de passar a mão pelos longuíssimos cabelos
e olhou por cima do ombro ao fazê-lo,
dentes brilhando num rosto escuro.
Claro que mais tarde se deitou
mastigando indolente um pé de erva
naquele tocante calção de banho desbotado
sozinho numa quente concavidade da duna.
Claro que me afastei sem barulho e despercebido
e claro que passo o dia a arrepender-me disto.

1921

Hans Warren in Uma Migalha na Saia do Universo, Antologia da Poesia Neerlandesa no Século Vinte. Lisboa: Assírio e Alvim, 1997, p. 87. (Tradução de Fernando Venâncio).

E mais uma vez colocado ...

03/09/2013

O barco...

              Amesterdão Canal de Prisengracht                                         O BARCO EM QUE SE DEVE

deixar baloiçar
 um homem. Uma mulher

em que se pensa, em que o homem pensa,

até ao último momento, talvez.
Devemos então fechar os olhos
para ver como, mar calmo,
e vista clara, o barco uma vez
após outra, cada vez mais penetrante,
alcança o mesmo promontório.

Hans Faverey (1933-1990) in Uma Migalha na Saia do Universo, Antologia da Poesia Neerlandesa no Século Vinte. Lisboa: Assírio e Alvim, 1997, p.107. (Tradução de Fernando Venâncio) 

01/09/2013

Anne Frank - "Chegará a hora em que seremos gente de novo"

"Algum dia essa guerra terrível vai terminar. Chegará a hora em que seremos gente de novo, e não somente judeus" (11 de abril 1944)*

É com as palavras de Anne que foco a visita à Casa de Anne Frank, em Amesterdão, mais propriamente ao esconderijo no escritório e fábrica do pai, após a ocupação Nazi. Um momento que considero pesado mas necessário, nele estiveram presentes emoções recordadas da leitura do Diário na minha adolescência. O holocausto através das memórias de uma menina e duma família. Uma visita inesquecível perpetuando os horrores e desumanidades para que o passado não se repita. 

Na fotografia pode ver-se a escultura de bronze de Anne Frank de Mari S. Andriessen, no Westermarkt, próximo da Casa Anne Frank. Não consegui ter a escultura só para mim, apesar de ter esperado por um momento solitário. As crianças que por ali passavam juntavam-se em torno da Anne de bronze, acabei por achar que até fazia sentido tê-las todas juntas.

"Ainda passo muitas manhãs de domingo a folhear e a olhar a minha coleção de astros do cinema, que está com um tamanho respeitável"
(28 de janeiro de 1944)

"Não poder sair deixa-me mais chateada do que posso dizer, e sinto-me aterrorizada com a possibilidade do nosso esconderijo ser descoberto e sermos mortos a tiros".
(28 de Setembro de 1942)

Trechos do Diário de Anne Frank retirados do livro Casa Anne Frank, Um Museu com História. Amesterdão:Casa Anne Frank, 2012, p. 118 e 119.(Tradução de Eliana Stella). * No prefácio do livro citado.

Anne Frank Huis, Prisengracht nº 263

Uma flor que encontrei em Amesterdão para Anne

DEDICO esta postagem em especial a Myra Landau que viveu em Amesterdão e conheceu esta triste realidade.

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